quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

CENAS DIÁRIAS


I – SEM DESVIO

Maria Inez do Espírito Santo


Humaitá, Rio de Janeiro, 2007.

Diariamente indo e vindo de casa até o trabalho, percorro dois quarteirões dos mais movimentados do bairro. No trajeto, a Cobal, um conglomerado de lojas de alimentos, restaurantes, com dois parques de estacionamento, lojas de roupas, de flores, de material fotográfico, de decoração, vídeo-locadora, salpicados ao redor, colorindo a região e trazendo aromas gostosos e outros tantos muito desagradáveis, ao mesmo tempo.

Como quase tudo no Rio de Janeiro, a Cobal é mal cuidada. Suja, não tem tempo suficiente para se refazer do desgaste intenso que sofre, atendendo ao público, que se reveza em solicitações múltiplas, de manhã até a madrugada. O odor acre que persiste no ar, mesmo após a “limpeza” diária, revela o não cumprimento das normas de higiene dos códigos de postura oficiais.

Não é incomum ver-se ratos rondando caixas de mercadorias ou perambulando entre os canteiros do pátio externo, em busca de alimentos. Por repugnante que seja, isso não chega a espantar a freguesia. Nem o lixo acumulado na rua ao lado, por onde os caminhões de abastecimento entram e saem, incomoda a ponto de provocar indignação que gere providências dos comerciantes.

Na verdade, “a gente se acostuma a tudo - como diz a Françoise Sagan - até com a dor”, embora eu concorde com Marina Colasanti, quando diz: “A gente se acostuma, mas não devia”.

Tendo a Cobal como portal do insólito, passemos para a segunda quadra. Há ali, naquela pequena região, duas escolas públicas, quatro escolas particulares, várias clínicas médicas, algumas clínicas de atendimento psicológico, pelo menos dois laboratórios clínicos, um grande centro de serviço municipal, diversos escritórios, dois centros budistas, dois centros culturais, uma escola de teatro, e é claro, alguns ambulantes e um lavador de carros que utiliza a calçada como oficina, tendo inclusive instalação de luz puxada de um poste da rua e criando ali uma lagoa permanente.

Pois, atualmente, tenho encontrado, todos os dias, nesse quarteirão, nos horários mais variados, perto de uma dezena de crianças e jovens, provavelmente moradores de rua, dormindo pelas calçadas, em situação de miséria e desamparo que ressaltam aos olhos mais distraídos. Estendidos no chão, cobertos por panos e enrolados uns nos outros como “bicho-de-monte”, parecem tão exaustos que resistem aos ruídos urbanos diurnos e mesmo ao passar constante dos transeuntes.

Para que as crianças circulem a caminho das escolas, precisam usar a rua, já que as calçadas se tornaram as camas dessas pessoas, seus sanitários, seu reduto.

Mesmo assim, nenhuma providência é tomada. É como se ninguém estivesse vendo o que de fato está acontecendo a nosso redor.

Fico pensando no que se ensina nessas escolas, o que se trata nessas clínicas, o que se prepara nesses escritórios e de como é possível conciliar os valores que alicerçam esses serviços, com o descaso e a impotência frente a um quadro tão flagrantemente denunciador da nossa doença social.

Na frente da Cobal, outros tantos meninos, mulheres com crianças e até homens adultos, cercam os passantes, pedindo ou exigindo esmolas e ajuda. Desses, a gente que passa, normalmente se esquiva, foge até. Cada dia maior o contingente, torna a ajuda individual impossível de surtir algum efeito bom.

Mas os que ali à frente estão adormecidos, desamparados e indefesos pelo sono, esses que já transformaram as calçadas em dormitórios, sanitários, quase covas, nos paralisam quando, ao contrário, tal situação deveria provocar em nós uma nova atitude.

Todos os dias, por isso mesmo, chego muito triste a meu trabalho. Por mais que acorde com o céu azul, por mais que queira recomeçar do zero cada etapa, me estristece confrontar-me com a miséria material de alguns de meus semelhantes e com a miséria moral que já se estende a todos nós, que pactuamos com isso.

Não falo aqui, é preciso deixar claro, de afastar de nossos olhos o quadro aflitivo, tirando daqui pra ali o que possa nos ser desagradável de ver. Falo de acordar, dentro de nós, nossa parte indigente, que já não tem mais vontade de mudança, que não tem mais desejo de viver. Acordá-la e cuidar bem dela, em primeiro lugar.

A partir daí será mais fácil nos unirmos, em busca de soluções (os que entre nós ainda não tiverem virado estátua de sal) para irmos ao encontro desses seres humanos, que aí estão, refletindo nosso próprio abandono.